domingo, 29 de junho de 2014

Amor e sexo


Hoje está aquele domingo perfeito de certa forma: há poucos carros na rua, meu café está quente e gostoso, da sala ouço o Vini dar umas roncadinhas de sono profundo, dos fundos ouço os pássaros livres conversarem com as calopsitas do vizinho. 
Gosto de acordar mais cedo aos domingos e escrever. Às vezes me esqueço o quanto aprecio ficar sozinha para ouvir os sons do mundo e da minha cabeça. 

A chuva não pára e assola muitas comunidades no meu estado, mas hoje a chuva tem um belo som, como um trance que me embala.
Há pouco olhava no Catraca Livre as fotos de casais homossexuais do século passado. Um trabalho belíssimo de Sebastien Liftshitz . Algumas fotos me deixaram verdadeiramente emocionada, porque é possível captar amor e cumplicidade, entrega e satisfação. É quase possível tocar o sentimento que há ente os casais. Há uma completude naqueles olhares, na linguagem corporal.

Sei que bato nessa tecla muitas vezes, mas sou uma defensora do amor. Não consigo compreender como é possível alguém achar o amor feio, estranho, anormal. O amor é uma dança que se descobre a cada dia. É um livro daqueles que você não consegue largar nunca, que quer ler e reler infinitamente. O amor é ser livre com outra pessoa: livre de padrões, de rótulos, de preconceitos, de convenções sociais. O amor é a completa absolvição dos pecados, é luxúria sem culpa, tesão carinhoso, cuidado e zelo.

E aquela historinha de "o amor não é isso.. o amor é outra coisa", na real é: o amor é infinitas coisas, mas todas boas, que engrandecem, embelezam, trazem sorrisos e segurança. O amor é segurança. Mas para cada um o amor se mostra de um jeito diferente, porque o amor é único. O jeito que você ama João pode ser diferente do jeito que amou Pedro, e não tem nada a ver com o jeito do amor pela irmã ou pelo filho. O amor é infinito.

Então, se o amor é um sentimento que traz segurança, alegrias, liberdade e infinitude como é que eu vou me meter no amor dos outros? Como é que eu vou achar que o amor dos outros vai ser igual ao meu? Ou que o meu será igual ao dos outros?

A questão não é essa? A questão é sexo? Não me diga que você faz só aquele sexo basiquinho, sempre igual... preliminares, uma posição só, gozo de um dos dois ou dos dois (mas nem sempre)? Entendo sua frustração. Entendo sua chatice. É falta de criatividade, é falta de diversão, falta de prazer nesse corpo. Que pena! Você poderia estar vivendo num mundo exclusivamente seu, cheio de delícias e intimidades. Porque NINGUÉM precisa saber o que você faz, ninguém precisa julgar sua vida sexual. Sexo é uma terra mágica onde se pode brincar de tudo, desde que seja o que os participantes desejam. Pode ser em duplas, trios... quem quer brincar decide. Pode ter objetos, roupas, fetiches... pode envolver lugares, luzes, aromas, sabores. Pode ter teatrinho e todo tipo de encenação. É pura experimentação. Se não der certo, não se abale, um abraço e um sorriso de cumplicidade consertam tudo. 

Eu desejo que todos tenham ótimas experiências sexuais sempre. Porque o importante é que não sejam traumáticas a nenhuma das partes (especialmente das íntimas). Desejo mais ainda que parem de julgar as práticas dos outros.. e o amor dos outros. Lembrem-se: amor e sexo são únicos! Não é pra ficar comparando. Isso azeda, estraga, te envenena, você se rala... porque só você se prejudica por ficar julgando. Enquanto você fica preso às convenções puritaninhas e sem graça, pessoas inteligentes vivem felizes, realizadas e bem servidas, muito bem, obrigada.

Sabe qual o segredo da vida: cada um cuida da sua e deseja que todos encontrem a felicidade. Por que você não tenta? 

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Culpa

Eu não consigo viver em uma sociedade de culpa.
Não acredito na culpa. Ela impele, reprime, diminui, exila.
A culpa não faz com que haja progresso, só arrependimento.
É claro, o arrependimento é o primeiro passo. Infelizmente, para a culpa, ele também é o ponto final, a conclusão.

Eu não quero saber se você se arrepende das coisas que fez ou deixou de fazer... Se sentiu remorso ao negligenciar seu filho, se pensou "eu não devia ter cortado a frente desse cara, quase deu um acidente", nem se demorou na cama pra dormir pensando em como suas atitudes deveriam ter sido melhores e hoje você é infeliz por sua própria culpa....

Ponderar é preciso... ficar acordado até tarde, comer em excesso pra suprir aquela falta de qualquer coisa em sua alma, chorar desesperadamente... tudo isso faz parte da limpeza, faz parte de juntar forças.

Porque o que interessa mesmo é fazer algo depois, para melhorar aquilo que aconteceu. Não para compensar. Odeio essa palavra.*  Algo para mudar... para que, a partir daquele momento, aquela situação passe a ter outro valor, ter brilho, clareza, dedicação, alegria... para que tuas atitudes se transformem.... e não fiquem apenas no arrependimento.

Eu sei. às vezes é difícil. Mas pense nos benefícios. Pense na corrente de energia positiva, no efeito dominó de good vibes.

Elimine a culpa, alimente as soluções.

Você é luz: irradie.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Sobre uma certa liberdade

É sábado. Oito e meia. Me preparo para entrar em uma sala de cirurgia para a retirada de um órgão. Não, não é doação. Não estou doente. Não é vesícula. É um órgão muito controverso, e não é o coração, nem o cérebro. Sem eles não poderia viver. Não é nenhum pulmão, nem rim. É meu útero.


Tenho 27 anos e não tenho filhos. Não terei filhos biológicos e não adotarei. Não sou um monstro. Não sou homem. Não sou homossexual, não sou bissexual. Sou hétero, casada, sem aspirações para a maternidade.  Sou livre e acredito na humanidade.

Há algum tempo sigo no Facebook a Travesti Reflexiva, um ser humano que trocou de sexo por ter nascido com sua alma presa em um corpo errado. Essa nova mulher recebe mensagens de ódio diárias, de pessoas que não fazem nada melhor da vida que regular a vida dos outros. Abaixo segue algo que também me diz respeito:

Não sou travesti. Nasci no corpo que deveria nascer. Ninguém nunca me disse que, por ser mulher, eu deveria obrigatoriamente ser mãe. Ninguém me disse diretamente. Menstruei aos 14 anos.  Minha menstruação sempre foi uma desordem. Sangrava 15 dias seguidos, parava 15 e sangrava de novo. às vezes ficava 3 dias, passava o mês e nada. Até que vinha um rio e eu tinha que jogar fora calcinhas lindas. Poucos anos depois resolvi que não podia mais menstruar. Ficava com nojo, sentia cheiro de sangue e já me irritava. Parei. Tomei pílula contínua para não descer mais. Bom é que elas tratavam meus ovários. Quer dizer, faziam de conta que tratavam. Tive que começar com anticoncepcional injetável. Meu pai aplicava em mim, com suas grandes mãos de anjo.  Desse medicamento ganhei muita celulite e estrias. Mas isso não me incomoda, pois meus ovários estavam curados.  Voltei a tomar anti via oral. Me esquecia. Meu ciclo "loqueava" de novo. Foi aí que troquei de ginecologista e conheci a fada da minha felicidade: uma mulher linda, sempre envolta em uma aura jovem e cintilante. Ela me apresentou o Myrena - um DIU de progesterona que, além de me impedir de engravidar, faria com que eu não menstruasse por 5 anos sem nenhum efeito colateral a não ser a reconstrução do meu sistema, sem interferências hormonais na corrente sanguínea, sem riscos de embolia, me protegendo contra endometriose. É a glória esse Myrena. Recomendo a todas as mulheres que prezam por sua saúde.

Me esqueci de falar que tenho Tireoidite de Hashimoto: uma condição em que meu organismo acredita que minha tireoide é um corpo estranho e, portanto, deve ser bombardeado até sua morte.Conversando com um médico (ex aluno meu) concluímos que quem tem Hashimoto certamente desenvolverá nódulos em seus tecidos glandulares. Uma vez apresentei um nódulo no rim, agora tenho um na própria tireoide e desenvolvi miomas uterinos há mais de 5 anos. E é essa história que quero contar:

Tive 3 namorados na vida. O primeiro não conta. eu era uma guriazinha tola. O segundo durou 4 anos, mas não pensava em casar com ele. O terceiro é meu marido. Não somos casados na igreja nem no papel. Somos casados por contratos verbais selados todos os dias, às vezes várias vezes por dia. Estamos juntos há quase 7 anos. Nossa conexão foi instantânea e logo percebi que era o homem com quem eu iria passar o resto da minha vida, apaixonada como uma garotinha, mas amadurecendo constantemente, me tornando uma mulher.

Sempre vou aos médicos. Gosto de saber da minha saúde, gosto de conversar com médicos em geral. Minha tia é dermato. Passei minha vida lendo os livros dela, conversando sobre enfermidades e o corpo. Fazia uns 2 anos de namoro e fui numa das consultas com a ginecologista. Ultrassom pra ver se o DIU estava no lugar certo. Estava. Mas ele tinha uns amigos.. uns miomas. Passei 2 anos e meio gestando esses nódulos, com cólicas, desconforto, sangramentos, choro, muito choro. Tive que fazer uma cesariana e retirei dois grandes, um pequenos e inúmeros foram cauterizados. Eles equivaliam a um bebê de 3-4 meses de gestação.

No quarto do hospital a fada veio me visitar. Eu tinha 25 anos, época em que os hormônios ficam doidos para gestar. Ela me disse que eu deveria escolher: ou engravidava dali 1 ou 2 anos, ou desistia de ser mãe. Logo troquei de DIU pois o outro tinha expirado seus 5 anos.


Desistir? Nunca quis! Mas meus hormônios pensaram no meu namorado que era ótimo com crianças. Ele tinha cara de pai. Seria um pai fantástico. E como eu queria ver a nossa combinação em um bebê. Seria o bebê mais lindo do mundo.

Chorei meses. Passou. 

Um ano depois da cirurgia lá fui eu fazer ultrassom. 3 novos filhotes. Eu poderia ter engravidado ali... Teria um bebê e os miomas crescendo, correndo o risco de ter o útero partido, ou uma gravidez de risco.... Deixei que crescessem. Eu já tinha recuperado meus sentidos e minhas ânsias por maternidade sumiram.

Hoje tenho 7 miomas e um ovário aumentado. Meu útero tem 222 cm³ - quando o normal é de 50 a 90.
Vou tirar meu útero e minhas trompas. 

Vou perder o órgão que me faz mulher. Não é isso que as pessoas acham das travestis: se não tem útero não é mulher. Nunca vai gerar um filho!

Não adianta. Odeio rotina, cocô me dá náusea, durmo deitada no sofá no meio do filme, meu sono é pesado. É egoísmo? Acho que não. Tem tanta gente tendo filho nesse mundo. Acho que se eu não tiver, o planeta vai me agradecer. Assim dou espaço para outras mulheres que desejam ser mães, que tenham essa vocação de verdade. 
Já tenho meus filhos que não gerei: são meus alunos, amigos e amigas que me pedem conselhos, que choram, que contam problemas, pessoas que encorajo... a gente acaba sendo mãe de diversas formas.

Mas não tenho útero. Não gestarei nem menstruarei. Sou travesti, então. Com muito orgulho.

Sou livre para decidir quem quero ser.