terça-feira, 3 de junho de 2014

Sobre uma certa liberdade

É sábado. Oito e meia. Me preparo para entrar em uma sala de cirurgia para a retirada de um órgão. Não, não é doação. Não estou doente. Não é vesícula. É um órgão muito controverso, e não é o coração, nem o cérebro. Sem eles não poderia viver. Não é nenhum pulmão, nem rim. É meu útero.


Tenho 27 anos e não tenho filhos. Não terei filhos biológicos e não adotarei. Não sou um monstro. Não sou homem. Não sou homossexual, não sou bissexual. Sou hétero, casada, sem aspirações para a maternidade.  Sou livre e acredito na humanidade.

Há algum tempo sigo no Facebook a Travesti Reflexiva, um ser humano que trocou de sexo por ter nascido com sua alma presa em um corpo errado. Essa nova mulher recebe mensagens de ódio diárias, de pessoas que não fazem nada melhor da vida que regular a vida dos outros. Abaixo segue algo que também me diz respeito:

Não sou travesti. Nasci no corpo que deveria nascer. Ninguém nunca me disse que, por ser mulher, eu deveria obrigatoriamente ser mãe. Ninguém me disse diretamente. Menstruei aos 14 anos.  Minha menstruação sempre foi uma desordem. Sangrava 15 dias seguidos, parava 15 e sangrava de novo. às vezes ficava 3 dias, passava o mês e nada. Até que vinha um rio e eu tinha que jogar fora calcinhas lindas. Poucos anos depois resolvi que não podia mais menstruar. Ficava com nojo, sentia cheiro de sangue e já me irritava. Parei. Tomei pílula contínua para não descer mais. Bom é que elas tratavam meus ovários. Quer dizer, faziam de conta que tratavam. Tive que começar com anticoncepcional injetável. Meu pai aplicava em mim, com suas grandes mãos de anjo.  Desse medicamento ganhei muita celulite e estrias. Mas isso não me incomoda, pois meus ovários estavam curados.  Voltei a tomar anti via oral. Me esquecia. Meu ciclo "loqueava" de novo. Foi aí que troquei de ginecologista e conheci a fada da minha felicidade: uma mulher linda, sempre envolta em uma aura jovem e cintilante. Ela me apresentou o Myrena - um DIU de progesterona que, além de me impedir de engravidar, faria com que eu não menstruasse por 5 anos sem nenhum efeito colateral a não ser a reconstrução do meu sistema, sem interferências hormonais na corrente sanguínea, sem riscos de embolia, me protegendo contra endometriose. É a glória esse Myrena. Recomendo a todas as mulheres que prezam por sua saúde.

Me esqueci de falar que tenho Tireoidite de Hashimoto: uma condição em que meu organismo acredita que minha tireoide é um corpo estranho e, portanto, deve ser bombardeado até sua morte.Conversando com um médico (ex aluno meu) concluímos que quem tem Hashimoto certamente desenvolverá nódulos em seus tecidos glandulares. Uma vez apresentei um nódulo no rim, agora tenho um na própria tireoide e desenvolvi miomas uterinos há mais de 5 anos. E é essa história que quero contar:

Tive 3 namorados na vida. O primeiro não conta. eu era uma guriazinha tola. O segundo durou 4 anos, mas não pensava em casar com ele. O terceiro é meu marido. Não somos casados na igreja nem no papel. Somos casados por contratos verbais selados todos os dias, às vezes várias vezes por dia. Estamos juntos há quase 7 anos. Nossa conexão foi instantânea e logo percebi que era o homem com quem eu iria passar o resto da minha vida, apaixonada como uma garotinha, mas amadurecendo constantemente, me tornando uma mulher.

Sempre vou aos médicos. Gosto de saber da minha saúde, gosto de conversar com médicos em geral. Minha tia é dermato. Passei minha vida lendo os livros dela, conversando sobre enfermidades e o corpo. Fazia uns 2 anos de namoro e fui numa das consultas com a ginecologista. Ultrassom pra ver se o DIU estava no lugar certo. Estava. Mas ele tinha uns amigos.. uns miomas. Passei 2 anos e meio gestando esses nódulos, com cólicas, desconforto, sangramentos, choro, muito choro. Tive que fazer uma cesariana e retirei dois grandes, um pequenos e inúmeros foram cauterizados. Eles equivaliam a um bebê de 3-4 meses de gestação.

No quarto do hospital a fada veio me visitar. Eu tinha 25 anos, época em que os hormônios ficam doidos para gestar. Ela me disse que eu deveria escolher: ou engravidava dali 1 ou 2 anos, ou desistia de ser mãe. Logo troquei de DIU pois o outro tinha expirado seus 5 anos.


Desistir? Nunca quis! Mas meus hormônios pensaram no meu namorado que era ótimo com crianças. Ele tinha cara de pai. Seria um pai fantástico. E como eu queria ver a nossa combinação em um bebê. Seria o bebê mais lindo do mundo.

Chorei meses. Passou. 

Um ano depois da cirurgia lá fui eu fazer ultrassom. 3 novos filhotes. Eu poderia ter engravidado ali... Teria um bebê e os miomas crescendo, correndo o risco de ter o útero partido, ou uma gravidez de risco.... Deixei que crescessem. Eu já tinha recuperado meus sentidos e minhas ânsias por maternidade sumiram.

Hoje tenho 7 miomas e um ovário aumentado. Meu útero tem 222 cm³ - quando o normal é de 50 a 90.
Vou tirar meu útero e minhas trompas. 

Vou perder o órgão que me faz mulher. Não é isso que as pessoas acham das travestis: se não tem útero não é mulher. Nunca vai gerar um filho!

Não adianta. Odeio rotina, cocô me dá náusea, durmo deitada no sofá no meio do filme, meu sono é pesado. É egoísmo? Acho que não. Tem tanta gente tendo filho nesse mundo. Acho que se eu não tiver, o planeta vai me agradecer. Assim dou espaço para outras mulheres que desejam ser mães, que tenham essa vocação de verdade. 
Já tenho meus filhos que não gerei: são meus alunos, amigos e amigas que me pedem conselhos, que choram, que contam problemas, pessoas que encorajo... a gente acaba sendo mãe de diversas formas.

Mas não tenho útero. Não gestarei nem menstruarei. Sou travesti, então. Com muito orgulho.

Sou livre para decidir quem quero ser.

2 comentários:

  1. Que lindo Carol, chorei!

    Você é a mulher mais mulher que eu conheço.
    Por tua feminilidade, por teu sorriso, teu olhar, por tua garra e força. Pelo jeito como abraça os problemas dos teus amigos, alunos.
    E você já é mãe, mãe do mundo!

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  2. Carol, foi um dos textos mais lindos que já tive o prazer de ler!
    És uma mulher que sempre admirei, apesar de não termos tido muito contato... Sempre quis me espelhar em muitas coisas sobre o teu jeito, de ser decidida, independente, com um coração aberto para todos e uma Mulher com M maiúsculo mesmo.
    Um órgão não diz e nunca deverá dizer o que somos. Todos nós decidimos, ao acordar, o que queremos ser - nem que seja só por aquele dia.
    Você é linda por dentro e por fora.
    Continue sempre assim!

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